Monday, July 23, 2007

Deus e o S.U.S

O que tem haver a existência de Deus ou a crença na existência de Deus e a crença no Sistema Único de Saúde, conhecido nacionalmente como S.U.S? Antes de chegarmos às explicações arquetípicas desta relação, ou uma tentativa de explicar a relação sob o referencial da psicologia analítica preciso contextualizar o motivo que me levou a este esforço.

Durante uma aula sobre modelos assistenciais de saúde (sanitarista x privatista), fui instigado a provar que o S.U.S era funcional, bom, útil, adjetivos afins. Como sabemos, o S.U.S é referenciado pelo modelo sanitarista, graças ao Movimento da Reforma Sanitária, no final da década de 70, e que culminou com a VIII Conferência Nacional de Saúde em 1986. Caros leitores, eu não sou herege, jamais pronunciaria que o S.U.S não presta, na dúvida procuro me manter nos ditames do altíssimo e evitar a porta do inferno. Digam-me quem tiver argumentos ou coragem que a saúde não seja um direito do cidadão, um dever do Estado e que não seja universal o acesso a todos os bens e serviços que a promovam e recuperem. Digam-me, se seria contra a este pensamento/sentimento/complexo arquetípico que resultaram duas das principais diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), que são a universalidade do acesso e a integralidade das ações.

Por que, então, seria provocado a uma problemática da qual não pronunciei? O problema surgiu a partir do meu questionamento da metodologia empregada para compreender e estudar os dois modelos. Fora utilizado, na ocasião, dois grupos de discussão e posterior defesa, “como se” fossemos fiéis defensores do que acabávamos de ler, e seria submetido a um “júri popular”. Sabiamente, uma colega pronunciou esta é “defesa da qual já se conhece o perdedor”, ora estávamos numa residência multiprofissional em saúde da família (com ênfase em saúde pública). No final do teatro, coloquei-me que não deveríamos questionar os modelos de forma unilateral, mas deveríamos vê-los e considerar que momentos eram úteis, em seus aspectos positivos e negativos. Continuei afirmando que os modelos funcionam de forma complementar, apesar dos esforços atuais da saúde no Brasil em enfatizar o modelo sanitarista. A minha fala apenas expressavam um dado da realidade, já que operamos com o sistema privatista e sanitarista, e dentro desta perspectiva precisamos refletir os dois, sem dogmatismo. Posteriormente, vim entender que minha fala, também, expressava um dado teórico, conforme segue:

“(...) Modelo não é padrão, não é exemplo, não é burocracia. Modelo é uma razão de ser - uma racionalidade. É uma espécie de "lógica" que orienta a ação. Modelo de atenção à saúde ou modelo assistencial não é uma forma de organizar serviços de saúde. Também não é um modo de administrar (gestão ou gerenciamento) o sistema e os serviços de saúde. Modelo de atenção é uma dada forma de combinar técnicas e tecnologias para resolver problemas de saúde e atender necessidades de saúde individuais e coletivas. É uma maneira de organizar os meios de trabalho (saberes e instrumentos) utilizados nas práticas ou processos de trabalho em saúde. Aponta como melhor combinar os meios técnico-centíficos existentes para resolver problemas de saúde individuais e/ou coletivos. Corresponde à dimensão técnica das práticas de saúde. Incorpora uma "lógica" que orienta as intervenções técnicas sobre os problemas e necessidades de saúde (modelo de intervenção em saúde)” (PAIM, Jairnilson Silva).

Assim colocado, será que não seria mais adequado analisar a complementaridade dos dois modelos e saber de que forma melhor empregá-los com seus recursos técnico-científicos para melhor atender os “problemas de saúde individuais e/ou coletivos”? Complementaria a fala de Paim, e diria que o modelo de saúde não é religião, não entra no âmbito do bem e do mal; quantos indivíduos direcionados por quaisquer dos modelos são éticos em suas posições. Os modelos, as teorias, as idéias não podem ser submetidos a um júri, precisam ser submetidos à razão e a concretude dos fatos (se é que isso é possível).
Infelizmente nosso pensamento apela para a escolha entre o bem ou o mal, o certo ou o errado, o santo ou o pecador, o justo e o injusto. E assim foram-nos apresentados os modelos em dois artigos que estimulavam este tipo de reflexão. Os “mocinhos” ou as “mocinhas” eram as que defendiam o modelo sanitarista, os “bandidos” ou as “bandidas” eram os que aceitavam a presença do modelo privatista. A minha posição é que a saúde privada existe e poderia existir de forma complementar, salvo engano, a Lei 8.080/90 preconiza este condição, se não vejamos: “TÍTULO II - DO SISTEMA ÙNICO DE SAÚDE / DISPOSIÇÃO PRELIMINAR / § 2º A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em caráter complementar”. Fato irredutível a simples questão de crer ou não crer no S.U.S.
Diante da minha fala que os modelos co-existiam e precisavam ser entendidos neste âmbito, as falas posteriores eram desconsideras e fui imediatamente rotulado de descrente do Sistema Único de Saúde. Por mais que explicasse minha posição, era considerado um desconhecedor e um herege (peço desculpa pela licença poética) do S.U.S. Assim sob a justificativa da “ironia socrática” fui instigado a provar que o S.U.S era bom. A ironia socrática foi duplamente assassinada. Primeiro porque partia de um preconceito, segundo por que as pessoas não se ouviam mais. A ironia socrática transformou-se naquilo que Sócrates mais combatia - a retórica sofista.
Agora, posso explicar sobre a conexão entre o S.U.S e Deus. A proposição ou a retórica veio de uma remota lembrança da professora de um professor que todos os dias falava da não existência de Deus, “a ponto de ser chato”, lembrava a professora. Um aluno incomodado com este professor afirmou que ele tinha argumentos suficientes para negar a existência de Deus, e agora desejava que provasse a existência de Deus.
Só pelo fato de provar a não existência de algo, já lhe dar a condição de existência. Por exemplo, na proposição “Deus não existe”, é preciso que todos compartilhem o que É Deus, o que garante, antes de acabar a frase, Sua existência.
A existência ou não existência de Deus não muda o fato que estamos num embate eterno entre a vida e a morte. A existência ou não de Deus não muda o fato que o S.U.S não alcança todos os seus preceitos. Neste momento, sustentado por um dos pensadores mais importantes da psicologia, Carl Gustav Jung, podemos fazer a relação entre o S.U.S e a Providência Divina. Vale lembrar, que não era intenção da professora chegarmos a este ponto, mas como psicólogo, despertei pela curiosa associação de imagens e lembranças ao ponto de vincular a descrença no S.U.S à descrença em Deus. Para a psicologia analítica a pessoa é arrebatada por forças inconscientes, o que possibilita minhas argumentações e fazer este estudo comparativo, alegando em minha defesa que tudo pode não passar de uma fantasia. Arrisco, assim, numa possibilidade de associação inconsciente que nos levaria um arquétipo coletivo que move nossos complexos, condutas e pensamentos.
Começamos esclarecer, conforme Jung, do arquétipo que nos faz criar teorias, modelos ou leis de bem universal ou mesmo teologias e religiões que conduzem nossas ações. O arquétipo nos proporciona a crença que alcançaremos o “Paraíso” quando “haverá abundância para todos e um grande chefe, justo e sábio, reinará dentro de um jardim de infância humano” (JUNG, p.85). Este é um sonho arquetípico de uma Idade de Ouro. Não é preciso muito esforço para relacionar os preceitos e diretrizes do S.U.S, ditos no segundo parágrafo ao arquétipo. Um “grande chefe” está na figura do Estado, “abundância para todos” está na integralidade e universalidade de acesso. Um jardim de infância humano é nosso estado de inocência diante do mundo, no aguardo que a minha boa ação desperte no outro uma boa ação.
Racionalizando os fatores concretos da vida Jung afirma o seguinte:

“A triste verdade é que a vida do homem consiste de um complexo de fatores antagônicos inexoráveis: o dia e a noite; o nascimento e a morte, a felicidade e o sofrimento, o bem e o mal. Não nos resta nem a certeza de que um dia um destes fatores vai prevalecer sobre o outro, que o bem vai se transformar em mal, ou que a alegria há de derrotar a dor. A vida é uma batalha. Sempre foi e sempre será. E se tal não acontecesse ela chegaria ao fim” (JUNG, p.85).

Este conflito interior do homem, este contato duro com a realidade, nos leva ao sofrimento que nos induz a crer em algo, e as pessoas começam a buscar uma saída, a dar sentido à vida, o que ativa o arquétipo do paraíso. O professor, figura dita logo no início, que proclamava contra Deus, foi despertado por uma “luz” e tornou-se evangélico (segundo nos foi contado a história), o mecanismo que levava a negação ou aceitação de Deus é o mesmo, o embate entre a realidade e o desejo arquetípico de um bem universal, a diferença é a acomodação polarizada entre um ou outro. Os que caminham por outras convicções não religiosas levam suas crenças às teorias ou aos modelos de saúde, mas não por acaso à saúde. Um modelo de saúde como é apresentado no S.U.S é um sistema complexo e dinâmico que afeta muitos setores da sociedade, e a própria condição de saúde/doença e vida/morte estimula a tais pensamentos de sentido existencial.
Uma segunda questão, porque precisamos tanto crer em algo? Que será respondida pela lógica socrática, com outra pergunta: “Por que, então, privar-nos de crenças que se mostram salutares em nossa crise e dão um certo sentido a nossas vidas?”. Agora sim, respeitamos a ironia socrática. Não importa se nossas crenças são ilusões ou não, temos inteira liberdade para escolher nosso ponto de vista a respeito de algo, se for útil e salutar ao nosso bem estar. As pessoas precisam de idéias gerais, diz Jung, que lhe dêem sentido à vida e lhe permitam encontrar seu próprio lugar no mundo. E era isso que estava sendo questionado entrelinhas a mim: “Como pode participar de uma especialização de saúde pública, se não acredita na ‘palavra’ (Lei 8.080/90), na melhor das hipóteses ‘questiona a palavra’. O S.U.S é inquestionável, você precisa conhecer o S.U.S para questionar o S.U.S, você precisa conhecer a Deus para questionar a Deus”; quase me foi dito isso, com um pouco de exagero, é claro. Só que o esforço de compreender um ou outro levaria uma vida (Deus ou S.U.S), só nos cabe aceitá-los.
Por fim, Jung coloca, “é a consciência de que a vida tem uma significação mais ampla que eleva o homem acima do simples mecanismo de ganhar e gastar. Se isto lhe falta, sente-se perdido e infeliz”. No contexto que me encontrava era impelido a dar sentido ao meu curso e minha prática profissional crendo no Sistema Único de Saúde. A minha defesa é que estamos tratando de coisas invisíveis e desconhecidas (pois o S.U.S está além do entendimento humano e não temos dados suficientes para provar sua excelência, seria arbitrário afirmar qualquer posição) por que exigimos provas e evidências?
O homem vive entre o bem e o mal, e o S.U.S só preconiza o bem. Apelo para Rousseau, para defender a letra do S.U.S, precisamos ter um alvo ideal, mesmo que seja impossível alcançá-lo, e devemos sempre nos manter nesta direção e chegar o mais perto possível. Entretanto, não devemos esquecer nossa sombra, o acesso universal, integral e equânime nunca foi alcançado e creio que nunca será pela humanidade. Aceitar tais fatos não é perda de convicção, é a aceitar a vida e humanidade nas suas falhas e imperfeições. É aceitar a humanidade como é.
Se o S.U.S viesse a terra diria, parafraseando Frei Betto, o seguinte:
- “Sim, vocês me louvam com os lábios, mas não com o coração. Prestam-me cultos, mas não libertam o oprimido. Amam mais a posse que o dom.
Fiquei preocupado e perguntei ao S.U.S:
- Vai nos deixar à deriva? Vai cancelar sua obra, zerar a criação?
- De modo algum. Por mais estúpidos que vocês sejam, não deixo de amá-los. Nem pretendo abandoná-los. Vocês haverão de aprender com os próprios erros. Espero apenas que não demasiadamente tarde.
Antes que ele fosse, indaguei:
- Caso queira encontrá-lo, aonde devo buscá-lo?
- Não precisa ir longe –disse com uma ponta de ironia – Basta um mergulho no seu mundo interior. Estou no lado avesso do seu coração. Mas prefiro que também me encontre na face dos que sofrem”[1]

Referências Bibliográficas:

BETTO, Frei. Conversando com Deus. In: Caros Amigos. Ano IX, número 100, julho 2005.

BRASIL. Lei 8.080/90. Endereço eletrônico: http://portalweb02.saude.gov.br/saude/area.cfm?id_area=169

JUNG, Carl Gustav. Chegando ao inconsciente. In: O homem e seus Símbolos. Carl Gustav Jung (concepção e organização). 16 impressão. Editora Nova Fronteira, s/d.

PAIM, Jairnilson Silva. Modelos Assistenciais: Reformulando o pensamento e incorporando a Proteção e a Promoção da Saúde. Acessado em 06 de março, no endereço eletrônico: http://www.anvisa.gov.br/institucional/snvs/coprh/seminario/modelo.htm.

[1] Paráfrase do texto “Conversando com Deus” Frei Betto, publicado na revista Caros Amigos – número 100, julho, 2005.